Hoje acordei pétalas. Acordei sentindo o côncavo das pálpebras e suas ranhuras pressionando o líquido dos meus olhos. As pálpebras não obedeceram a ordem: abrir.
Hoje acordei pétalas. Acordei a mente, as sinapses não só ativas, mas conscientes, ou autoconscientes, seja lá o que signifique. O corpo jazente na cama, imóvel. Todos os sentidos ali. O cheiro suave, o barulho da respiração, o toque do lençol, um gosto amargo de sono. A visão do quarto tranquilo em volta. Os olhos ainda fechados. A visão do quarto em volta, sereno, calmo, creme. O que vê a visão quando só pode ver o côncavo escuro das pálpebras?
Acordei pétalas. Hoje acordei terra, acordei decomposição e vida. Nas costas e nas mãos as minhocas furavam o solo ao meu redor. O dorso da perna criava raízes no lençol. Os caules e as folhas envolviam todo o meu corpo, apertado, sangrando. Não consigo me mover. As folhas são ásperas. Eu sou as folhas, sou a planta e sou as pétalas.
A janela está aberta, quente, ficou assim para entrasse a brisa da noite, mas já amanhece. Amanhece, a luz entra e me abro em flor. Estremeço de dor a cada pétala que se abre. A cada pedaço que se torna textura colorida e viva, eu sinto a dor de mudar, de transformar pele em pétala. Não consigo abrir os olhos. Nem sei se tenho ainda os olhos, mas vejo, vejo tudo que se passa. Sinto, na verdade, sinto tudo o que se passa. Vejo o calmo afora. Vejo o teto branco.
Não consigo abrir os olhos mas vejo um beija-flor na janela. A janela está aberta, o beija-flor se aproxima, sente um cheiro a descobrir. Se aproxima para sugar o néctar. Seu bico gigantesco está quase colado nos meus olhos. Eu vejo tudo, vejo quando a ponta fina do seu bico se aproxima dos meus olhos enquanto vejo os dele. Os meus estão fechados, mas o beija-flor mira o bico bem na pupila e logo afunda sua língua afiada, que se abre em duas quando invade o nervo.
Naquele dia acordei pétalas, com o grito que dei, espantando o beija-flor. Alguns dias depois, na costumeira consulta, não consigo olhar para a mulher a minha frente, enquanto conto sobre o dia em que acordei pétalas. Sem sequer um suspiro, ela se levanta, vai até mim e, enquanto me rega, pergunta: e quando foi que você dormiu?